
A Casa do Doutor Zeca
Autoria: João do Rio Verde
Publicado na Folha Nova, nº 1.350,
em 8 de Novembro de 1942.
O pavoroso incêndio que, na madrugada de 26 de Setembro , reduziu a um amontoado de ruínas uma grande e confortável casa residencial do Largo da Matriz, causou verdadeiro pânico pelo espetáculo inédito e dantesco. Toda a população despertou e, aterrada, procurava saber a causa dos estampidos que se ouviam a quebrar o silêncio costumeiro e os mais encorajados, chegando à janela, vislumbravam enormes labaredas que clareavam de um vermelho ardente quase toda a cidade.
Conhecida a origem do sinistro, centenas de pessoas procuraram extinguir a estranha fogueira, mas a impetuosidade das chamas, devido à existência de inflamáveis e à falta de bombeiros com os apetrechos indispensáveis, anularam a valentia e a boa vontade da nossa gente, transformando tudo, em pouco tempo, em um montão de cinzas.
Na parte térrea, justamente onde teve início o fogo, era outrora instalado o consultório do Dr. José Paulino Ribeiro Gorgulho, uma das figuras médicas de maior projeção naquela época. Foi ele um grande cientista e um notável clínico, porém muito maior do que tais atributos era o seu coração, pois ele buscava sempre atender com carinho aos humildes e aos indigentes, auscultando-os com bondade e doçura e muitas vezes fornecendo-lhes os medicamentos de que necessitavam para a cura ou alívio de seus sofrimentos.
Foi, pois, naquela velha casa, ora transformada em destroços, que viveram os seus sonhos de praticar a caridade sem alardes.
Se é verdade que na história da vida dos indivíduos, os feitos mais emocionantes de amor ao próximo são os realizados às ocultas, releva que recordemos esse traço predominante do muito saudoso e venerado cirurgião.
Não queremos, nesta crônica, fazer senão uma exaltação: glorificar, ainda uma vez, a memória daquele que sempre colocou a ciência a serviço da caridade.
Dª Elisa Gorgulho, saudosa companheira do ilustre médico, acha-se profundamente consternada com o imprevisto desaparecimento de sua estimada e cômoda morada. Ela, como nós, não lamenta os bens materiais que se perderam, mas os derradeiros vestígios daquele sábio que, como São Francisco de Assis, encontrava a verdadeira felicidade ao estancar as lágrimas dos infelizes. Vêmo-lo hoje ainda na visão da gratidão e da saudade, como a surgir dos entulhos daquele recanto, outrora o lar feliz em que ele amou, viveu e morreu.
Todos esses raciocínios nos vêm agora ao espírito, em meio de indefinível saudade, na evocação da velha e gloriosa casa tão inesperada e sinistramente consumida pelas chamas devoradoras.
João do Rio Verde
Novembro de 1942
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